sábado, 2 de abril de 2011

Anima: o elo perdido entre o Brasil rústico e a Europa medieval



Por volta de 1988, o experiente violinista, compositor e regente José Eduardo Gramani (1944 - 1998) formou o grupo Anima (alma, em latim), na cidade de Campinas (SP), com o intuito de explorar, principalmente, o repertório do período barroco, com instrumentos de época. No entanto, a pesquisa do grupo terminou por mergulhar em tempos mais remotos, aproximando-se do repertório medieval europeu, bem como do enorme leque de canções da cultura popular brasileira de tradição oral.

Em 95, ele começou uma pesquisa sobre a rabeca, passando a estudar a forma de confecção deste instrumento artesanal com mestres rabequeiros de várias partes do Brasil. Até 1998, Gramani (3ª foto) viajou por quase todo o país em busca de construtores do instrumento. Quando morreu, deixou uma coleção de cerca de 40 exemplares de rabecas. Esta pesquisa foi determinante para a elaboração do conceito musical do Anima, que passou a se diferenciar da linha adotada pela maioria dos grupos brasileiros de Música Antiga (medieval, renascentista e barroca), do Brasil e do mundo, que seguem um molde de época.


Além de Gramani, participaram da primeira formação do Anima: Isa Taube (voz), Luiz Fiaminghi (rabecas), Patrícia Gatti (cravo), Dalga Larrondo (percussão), Ivan Vilela (viola brasileira) e Valeria Bittar (flautas). O primeiro disco, “Espiral do Tempo” (hoje, um clássico da música brasileira contemporânea), foi lançado em 1998, mesmo ano da morte de Gramani, vitimado por um câncer.

Se formos fazer uma comparação esdrúxula, talvez Gramani tenha sido o Chico Science da música erudita brasileira. Destruiu fronteiras, aproximou elementos aparentemente díspares,  combinou substâncias musicais e instrumentos de diferentes origens, criando um som único e inovador. Assim como Science, Gramani morreu no seu auge criativo, acredito.

Depois da partida de Gramani, Luiz Fiaminghi assumiu a direção do Anima dando continuidade ao valioso trabalho fundamentado pelo mestre. No segundo disco, "Especiarias" (2000), Paulo Freire substituiu Ivan Vilela. Em seguida, o mesmo foi substituído por Ricardo Matsuda - culminando na terceira formação do grupo (2ª, 5ª e 6ª fotos) - que tocou em “Amares” (2003) e “Espelho” (2006), trabalho que teve uma versão ao vivo em DVD. Com uma nova formação, o grupo lançou em 2010 o disco "Donzela Guerreira".

Além destes trabalhos, o Anima é responsável pela execução do projeto/CD "Teatro do Descobrimento" (1999), idealizado pela meio-soprano Anna Maria Kieffer, lançado para as comemorações dos 500 anos do descobrimento do Brasil. Há, ainda, o disco solo de Gramani, "Mexericos da Rabeca" (1997), com composições suas escritas especialmente para as rabecas e executadas com o acompanhamento da cravista Patrícia Gatti.

Atualmente, o grupo é composto por Marlui Miranda (voz e instrumentos indígenas), Paulo Dias (percussão afro-brasileira), Gisela Nogueira (viola de arame), Marilia Vargas (soprano) e Silvia Ricardino (harpa). Da primeira formação, permanecem Luiz Fiaminghi e Valéria Bittar (1ª e 4ª fotos).  




O Anima sempre procurou unir instrumentos aparentemente díspares e deslocados no espaço e no tempo, como cravo, flautas barrocas e indígenas, rabeca, zarb e bendir (tambores originários do Irã e da Turquia, respectivamente), viola caipira, berimbau, triângulo, entre outros. Hoje, o grupo inclui uma harpa. Desse modo, podemos pensar de maneira genérica que a viola caipira seria o equivalente ao alaúde e a rabeca substituiria o violino, assim como os demais instrumentos rústicos corresponderiam a outros eruditos.

Para se ter uma ideia do ecletismo do trabalho do grupo, o primeiro CD, "Espiral do Tempo", trouxe músicas como "Tartarassa", atribuída ao trovador provençal Pierre Cardenal (1180 ? – 1278 ?), ao lado de "Tirana da Rosa", da tradição oral brasileira. No mesmo disco, a canção "Chovendo Na Roseira", de Tom Jobim, aparece de forma incidental no decorrer da interpretação da música de origem francesa "Se Jamais Jour", do século XIV, de autoria anônima. O segundo CD também trouxe músicas do folclore brasileiro, como "Tupinambá", "Moreninha" e "Canto das Fiandeiras", ao lado de "Tu Gitanas Que Adevinas" (anônimo, séc. XIV) ou "Blanca Niña", da tradição oral sefaradita (denominação dos judeus que habitavam a Península Ibérica durante a Idade Média).  


Apesar de a pesquisa do Anima parecer inédita, o trabalho de aliar a tradição da Música Antiga com o repertório da tradição oral brasileira não é absolutamente inédito, porque nos anos 70, o grupo pernambucano Quinteto Armorial já caminhava nesta direção, embora não executasse propriamente Música Antiga européia e sim música regional do Nordeste com moldes eruditos medievais e renascentistas.


O Anima foi uma das minhas trilhas sonoras dos anos 2000 e, inclusive, um dos objetos de pesquisa do meu trabalho de conclusão da especialização em Jornalismo Cultural pela Universidade Federal do Maranhão, terminado em 2005. Esta é a primeira postagem no blog de um grupo brasileiro.  Como aperitivo, deixo um vídeo da formação anterior e outro da atual.













3 comentários:

  1. Ola Eduardo

    adorei encontrar essa postagem; estava procurando coisas sobre o Gramani & Anima e 'te encontrei'...
    Gostei mais ainda porque era de São Luiz, terrinha amada por mim e pela Daniella Gramani, minha filha e do Zé. Se você já viu o encarte do Mexericos vai encontrar ela no Mel Poema, cantando com o pai.
    Atualmente a Dani é professora de canto popular da Federal da Paraíba e acabou em 2008 (acho...) o mestrado que tem a ver com ensino da Rabeca. Ela também organizou e publicou a pesquisa dele sobre Rabecas.

    Conhece o livro?quando puder visite o site http://www.gramani.com.br/index2.html

    um abraço da gloria

    ResponderExcluir
  2. Olá Glória,

    Sim, conheço o livro e conheço Daniella Gramani. Ela já veio a São Luís por diversas vezes no período das festas juninas, como integrante do grupo Mundaréu. Foi Daniella e Itaércio que me apresentaram o livro da pesquisa de Gramani sobre as rabecas, quando eu era repórter de cultura de um jornal local.

    Um grande abraço,

    ResponderExcluir
  3. Obrigado Sr. Eduardo!
    Procurava algo sobre este maravilhoso grupo e encontrei aqui boas informações. Por outro lado, sendo este o único espaço a repercutir esta obra fica provado que no Brasil a cultura não tem valor nenhum. O que temos é entretenimento de péssimo gosto. Esculhambaram com país. Não foi ao acaso. Querem o Brasil como a latrina do mundo. Ai que dó.

    ResponderExcluir