quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Violões latinos que alçam voo




O nome até parece, mas não se trata de uma dupla sertaneja, graças a Deus. Aliás, o duo mexicano Rodrigo Y Gabriela faz um som acústico pesado, criativo e vibrante, uma mistura de flamenco, música latina e hard rock. Uma pancada, que deixa marcas na memória auditiva. Se o nosso extraordinário Yamandú Costa fosse roqueiro, certamente tocaria assim.  



Antes de amplificar e remodelar o jeito latino de tocar violão, a dupla integrou uma banda de trash metal mexicana. Depois, eles partiram para a Irlanda com o objetivo de obter reconhecimento internacional. Trocaram as guitarras pelos violões e não deu outra. Hoje, o duo é referência da nova música latina instrumental, produzindo um som bastante estimulante, contundente e, melhor, totalmente orgânico.


Como pode ser observado no vídeo disponibilizado no blogue, Rodrigo cuida do violão solo, enquanto Gabriela executa a base, utilizando o instrumento também como recurso percussivo (técnica emprestada do flamenco). O casal já gravou seis discos, sendo quatro de estúdio e dois ao vivo.  Recomendo o disco homônimo de 2006, que contém os covers de “Stairway to Heaven” (Led Zeppelin) e “Orion” (Metallica). Também indico o mais recente “11:11”, cujas músicas prestam homenagens a artistas que são referências para o trabalho dos jovens violonistas mexicanos, a exemplo de Santana, Jimi Hendrix, Al Di Meola, Paco de Lucia, Pink Floyd e até o contemporâneo palestino - já abordado neste blogue - Le Trio Joubran. Procure e ouça no volume máximo.





quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Alquimia étnica portuguesa



Mesclando elementos de música celta, árabe, erudita e rock, o Dazkarieh produz uma das músicas mais inventivas de Portugal na atualidade. Formado em 1999, na capital Lisboa, o grupo já passou por diversas formações. No momento, compõem a banda Joana Negrão (vocais, pandeiros e gaita-de-fole), Rui Rodrigues (cavaquinho e guitarra), André Silva (bateria) e Vasco Ribeiro Casais (nyckelharpa, gaita-de-fole e flauta), único remanescente da formação original.



Para entender a música do Dazkarieh é preciso dividir a trajetória do grupo em três fases distintas. A primeira contava com a vocalista original Marie Beatriz Lúcio, depois substituída por Helena Madeira (não aparecem nas fotos), que gravaram, respectivamente, os dois primeiros discos, “Dazkarieh” (2002) e “Espanta Espíritos” (2004). Nesta fase, mais instrumental, os vocais reproduziam um idioma imaginário e o grupo já nos presenteava com uma alquimia rítmica inusitada e de grande expressão, semelhante a trabalhos desenvolvidos por outros grupos contemporâneos de música folk de Portugal e da Espanha, que comentarei a respeito posteriormente. Leia-se folk, neste blogue, como sinônimo de música tradicional, de raiz ou étnica, e não como o estilo anglo-saxão, de Bob Dylan, Neil Young, Nick Drake e Leonard Cohen, ok?




A segunda e melhor fase começa em 2006, quando a atual vocalista Joana Negrão chegou ao grupo e ainda integravam a banda o excelente percussionista Baltazar Molina e o músico Luís Peixoto. Neste período, gravaram o ótimo CD “Incógnita Alquimia” (assista ao vídeo promocional do disco), repleto de referências celtas, portuguesas e árabes, cortesia, principalmente, do referido percussionista que ilumina o trabalho inteiro. Isso, sem falar nas belas melodias.

Com um som mais encorpado, foi nesse disco também que o Dazkarieh passou a valorizar mais as canções, provavelmente, em razão da chegada da nova vocalista. Há brasileiros que estranham as letras e a forma de cantar portuguesa, mas vale uma audição. O que não dá para entender é o quase completo desconhecimento do Brasil sobre a boa música produzida em Portugal na atualidade.




A mais recente fase inicia com o disco duplo “Hemisférios” (2009), quando o grupo passou a caminhar em direção ao rock, o que tornou a sonoridade do Dazkarieh mais convencional, apesar de ter adquirido maior densidade. O lançamento do disco novo, “Ruído do Silêncio”, está previsto para março de 2011. Antes disso, aproveite e tire sua conclusão caro leitor e ouvinte.





sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Le Trio Joubran redime martírio palestino


O alaúde está para o mundo árabe exatamente como a cítara está para a Índia. É o instrumento que melhor traduz a identidade contemplativa do Oriente Médio. Nos últimos anos, um trio palestino de alaudistas, Le Trio Joubran, conquistou respeito e admiração por lá e na Europa, imprimindo um molde contemporâneo à música tradicional árabe. O som do Le Trio Joubran soa atual e inventivo. Nascidos na cidade bíblica de Nazaré (Norte de Israel), os três irmãos - Samir, Wissam e Adnan Joubran - são virtuoses do instrumento e improvisam com absoluta excelência.


Basicamente instrumental, como toda música para alaúde que se preze, a sonoridade do trio contém longos improvisos (chamados taksim no Oriente Médio) e inusitadas variações temáticas. Algumas músicas são etéreas e introspectivas, outras são vibrantes, acompanhadas por uma inventiva percussão. O melhor disco chama-se “Majâz”, de 2008. Três anos antes, eles estrearam com “Randana”, que também vale uma audição. Em 2009, veio a trilha sonora, de cunho intimista, do filme francês “Le Dernier Vol(O Último Voo), longa dirigido por Karim Dridi. E ainda tem o CD/DVD  
"A l'Ombre des Mots" (2009), gravado ao vivo, em homenagem ao poeta Mahmoud Darwich. Um novo trabalho, intitulado "AsFâr",  está previsto para março de 2011.


Enquanto não vem a libertação, o povo palestino pode se redimir por meio da arte. É a melhor forma de superar o sofrimento e afastar a violência. Na década passada, a Palestina perdeu dois grandes representantes no mundo, o pensador Edward Said (falecido em 2003), fundamental no campo do pensamento contemporâneo, e o poeta Mahmoud Darwich, morto em 2008. Agora, sem porta-vozes no Ocidente, o Le Trio Joubran ocupa parte desta lacuna, pois hoje o grupo é referência, por exemplo, da nova música produzida na França. Foram incluídos em coletâneas da melhor música feita no país atualmente.  Os irmãos palestinos, inclusive, mantêm residência em Paris.

Nas últimas férias, no Rio de Janeiro, topei com os dois melhores discos do trio, “Randana” e “Majâz”, na mais interessante loja de CDs e DVDs do Brasil, a ainda sobrevivente Arlequim Discos, localizada no Paço Imperial. Recomendo uma passada por lá, se possível, para quem ainda costuma comprar CDs e gosta de música de excelência: rock clássico, jazz, erudita, contemporânea e MPB. Um verdadeiro achado. O único porém são os preços, nem sempre convidativos.







domingo, 6 de fevereiro de 2011

Os queridos ciganos justiceiros da Romênia



Na Idade Média, os Haidouks eram bandidos justiceiros, que agiam nos moldes do cangaço, no interior da Romênia, contra a tirania dos senhores feudais. O espírito Haidouk simbolizava a luta pela liberdade e pela justiça. Atualmente, o Taraf de Haïdouks (Bando de Justiceiros) é um grupo de ciganos do interior da Romênia, que produz um som peculiar, divertido e rústico, congregando parte da riquíssima tradição musical do Leste Europeu.

A trupe incorpora o ideal de resistência dos antigos justiceiros. Afinal, durante o regime do ditador comunista Nicolae Ceausescu os músicos rom (ciganos) foram perseguidos, sofrendo diversas privações. Não podiam, por exemplo, tocar baladas de tradição oral que narram atos de heroísmo, para não incitar desgosto e revolta contra o regime. Passados 20 anos do fim das ditaduras européias, a discriminação contra este povo continua. Crianças ciganas, geralmente, não conseguem acesso ao sistema educacional europeu.


 

Formado por músicos de várias gerações (jovens e velhos) habitantes de um vilarejo da cidade de Clejani, localizada a sudoeste de Bucareste, o "bando" foi descoberto, por acaso, em 1990, durante as andanças de um etnomusicólogo suíço e dois músicos belgas, que ficaram perplexos com a qualidade do som que aqueles jovens e senhores criavam. Não demorou muito, tornaram-se queridíssimos no circuito folk europeu. As excursões por diversos países foram constantes. Uma das mais importantes passagens da trajetória do Taraf de Haïdouks foi a linda e memorável (veja no vídeo) participação no filme “Latcho Drom”, documentário de 1994, do diretor cigano argelino Tony Gatlif.


Depois da fama, conquistaram diversos fãs célebres, a exemplo do maestro e violinista judeu Yehudi Menuhin; do grupo novaiorquino Kronos Quartet; do ator Johnny Depp, que pagou cem mil dólares para vê-los no seu bar Viper Club; do estilista japonês Yamamoto, que confeccionou roupas para a turma se apresentar em Paris e Tóquio.
Dos discos lançados pelo grupo, indico a coletânea “Taraf de Haidouks” (1999), do conceituado selo Nonesuch, que sintetiza a sonoridade rústica, alegre, debochada e original da trupe, e o fantástico “Maskarada” (2006), um disco obrigatório, no qual os ciganos interpretam temas eruditos, de diversos compositores, a exemplo de Albeniz e Bartók.






sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Sobre o efeito Mayra Andrade


Numa certa noite perdida de 2007, estávamos no antigo bar 31, de propriedade de um catalão, no Centro Histórico de São Luís, quando ouvimos no som ambiente uma voz feminina que fisgou a emoção de todos. Era o arrebatador CD “Navega”, primeiro da linda cantora cabo-verdiana Mayra Andrade.

A cópia do disco tinha sido deixada no estabelecimento, displicentemente, por um cidadão francês e aproveitamos para reproduzir vários outros genéricos e disseminar a paixão pela artista entre os amigos apreciadores de boa música. O certo é que passamos meses sob o efeito Mayra Andrade.


Filha de pais cabo-verdianos, a cantora nasceu em Cuba, mas morou no Senegal, Angola, Alemanha e França (é cidadã parisiense desde 2003). No ano passado, a artista lançou o seu terceiro trabalho, “Studio 105”, e já desfruta de certo reconhecimento entre os brasileiros, pois realizou apresentações, em 2009 e 2010, no circuito Salvador-Rio-São Paulo. Além disso, foi inevitavelmente apadrinhada em terras tupiniquins por Chico Buarque e Caetano Veloso.

O som de Mayra Andrade é acústico, brejeiro, para ser apreciado, de preferência, deitado numa rede, contemplando o litoral. A sensação suave é próxima dos finais de tarde mais deliciosos. Algumas canções parecem MPB, samba. No entanto, os ritmos são do arquipélago de Cabo Verde, a exemplo da morna, coladera, funana e batuque. Não há aquela marcação, que divide os compassos ao meio, presente na música brasileira derivada do samba.


A familiaridade pode ser explicada. Afinal, a artista é apaixonada pelos melhores sons do Brasil. E mais, os seus discos contaram com músicos brasileiros de primeira linha. O incrível bandolinista Hamilton de Holanda, por exemplo, participou de “Navega”. Já o segundo e irregular trabalho, “Stória, stória”, contou com os arranjos de Jaques Morelenbaum e a produção de Alê Siqueira, que trabalhou com Tom Zé, Elza Soares, Marisa Monte e Tribalistas.

Mas o conforto não se dá somente no campo musical, pois ela costuma cantar em crioulo cabo-verdiano, que inclui algumas palavras da língua portuguesa, também falada no país. Daí, quando a escutamos, sentimos uma sensação peculiar: é possível entender uma ou outra palavra, despertando o desejo de decifrar por completo as letras. Nem sempre obtemos sucesso, é certo. 


Uma curiosidade é que, em 2009, estava prevista para ser realizada, na capital maranhense, a segunda edição do Festival Internacional de Música de São Luís, como parte da programação nacional do Ano da França no Brasil. Isso, antes da tresloucada cassação do então governador Jackson Lago. Mayra Andrade seria uma das atrações por sugestão minha, porque levei uma cópia de “Navega” aos curadores (alô Mochel, lembra-se?). Uma comissão do antigo governo estadual chegou a viajar para a França para tratar de assuntos políticos e culturais. Inclusive, de detalhes do evento e da contratação da artista.

O show dela chegou a ser anunciado no jornal O Imparcial alguns meses antes. Segundo a reportagem, aconteceria na noite do dia 8 de setembro, data do aniversário de São Luís. Por motivos políticos, o evento foi abortado e ficamos a ver navios. No lugar do festival, foi promovido um show com a ótima Angélique Kidjo, do Benim, infelizmente antecedida por cantores bregas locais. Lamentável.  Um dia, quem sabe Mayra Andrade passa por aqui para nos redimir de todos os vexames.